Está circulando como viral na internet
um vídeo horrendo (que felizmente é de ficção) de um menino que chama a polícia
porque apanhou de cinto de sua mãe. NÃO vamos postar o link aqui para não
divulgar ainda mais este material que estimula e propagandeia a violência
contra a criança. Mas, gostaríamos de deixar algumas reflexões:
1. A mãe do menino alega que bateu nele
porque foi avisada pela direção da escola, num telefonema, de que ele estava
faltando aulas sem o seu consentimento. Se a falta da criança parece grave,
qual seria a gravidade da falta da MÃE? Se o seu filho sai de casa para ir à
escola, mas mata as aulas, e responsabilidade é somente do pequeno ou também do
adulto, que é responsável pela criança? O adulto não acompanha a vida escolar
do filho: não o leva e busca na escola (vale lembrar que é uma criança de no
máximo uns 10 anos), não verifica seus cadernos, agenda escolar, livros
didáticos, deveres de casa, não vai às reuniões de pais e mestres? Porque se a
mãe fizesse tudo isso (que é o mínimo esperado de quem acompanha a vida escolar
dos filhos) ela certamente já saberia se ele está assistindo às aulas ou não, e
não precisaria receber um telefonema da escola pra descobrir a ausência do
filho.
2. Se o filho está matando as aulas, não
caberia à mãe procurar saber O QUE motivou a ação da criança? Pois o NORMAL,
para uma criança que está aprendendo e se relacionando muito bem com colegas e
professores, é GOSTAR da escola. Sim, as crianças gostam de aprender e conviver
com colegas e professores na escola. Se elas não gostam e desejam a todo custo
evitar a escola, matando aulas às escondidas, isto é péssimo sinal. Pode
indicar que elas provavelmente não estão aprendendo, não conseguem acompanhar
os conteúdos, que talvez estejam sofrendo bullyng ou discriminação (seja por
parte de colegas ou até dos professores), ou estejam sob a influência (talvez
até mesmo coação) de pessoas mal intencionadas. O que seria mais efetivo neste
caso: BATER na criança ou ir até a escola e conversar com a equipe pedagógica,
para saber o que está acontecendo de errado? Será que BATER na criança dará a
ela, automaticamente, “vontade” de frequentar as aulas, ou é apenas uma coerção
covarde do adulto para se livrar do problema, e ineficaz no sentido de AJUDAR a
criança?
3. Do mesmo modo que a mãe, o policial
não se preocupou em averiguar o que motivava a ação da criança. Apenas
perguntou ao garoto quantas vezes a mãe lhe bateu, se foi apenas com o cinto, e
em qual lugar do corpo. O menino responde que ela bateu “apenas” três vezes,
“apenas” com o cinto e “apenas” no bumbum. Como o policial acha tudo isso
“pouco” (pelo visto a criança só pode queixar-se quando ferida a ponto de ir
direto pro hospital, no mais é “tapinha educativo”) então ele decide...
AMEDRONTAR E COAGIR o menino, dizendo que da próxima vez ele mesmo dará uma
surra nele. Realmente, pelo visto o policial estava super preparado para lidar
com a situação... só que NÃO! Pois agiu de forma nada profissional ao incutir
seus valores PESSOAIS em sua conduta.
4. Se você nunca viu uma criança marcada
por levar surra de cinto, estejam certos que JÁ VIMOS. Não é bonito de se ver.
E sim, na maioria dos casos, se você perguntar à criança, ela dirá que
“mereceu” a surra, pois é isto que toda a sociedade lhe ensinou desde que ela
era um bebê e aprendeu a engatinhar, começou a explorar o ambiente, e a levar
“palmadinhas educativas” pra aprender a não mexer onde não devia. A violência
doméstica contra a criança vai numa escalada: o adulto lhe dá um tapinha para
coibir um comportamento. Com o tempo apenas isso não lhe parece eficaz para
cumprir a meta de cessar imediatamente com o comportamento indesejado da
criança. Então ele começa a dar dois tapinhas, três... em breve começará a usar
objetos para bater na criança, tais como cintos, chinelos, varas. Desse ponto
para perder o autocontrole, e ferir gravemente a criança, ou talvez levá-la à
morte, pode ser uma curta distância, conforme pode-se observar no álbum de LUTO
que mantemos aqui em nossa página.
5. Quase todo mundo a favor de
“palmadinhas” também se diz “contra espancamentos”. Mas a repercussão desse
vídeo deixou muito claro que as pessoas “pró-palmadinhas” LEGITIMARAM o uso de
formas mais graves de agressão, APOIANDO o uso do CINTO para bater em criança.
Ou seja, esse vídeo deixa claro que o discurso de que se bate como “último
recurso” ou que só se dá “uma palmadinha” é uma furada. No caso do filho que falta às aulas, a mãe não parece ter tomado
nenhuma providência antes de bater com cinto, tais como procurar dialogar com a
escola e com a própria criança, a fim de verificar como e por que ela estava
faltando às aulas. Bater parece ter sido o PRIMEIRO recurso, e não o “último”.
Bater não resolve nada, além de descarregar a raiva do adulto e dar a ele mesmo
a falsa sensação de que “tomou providencia” em relação ao comportamento
inadequado da criança.
6. A mensagem que o policial dá ao menino
ao dizer-lhe "nunca denuncie sua
mãe!" é perigosa: se sua
mãe te bater, não denuncie, caso contrário, eu bato em você. Alguém viu alguma
coerência nisso? Esse é o retrato da cultura punitiva: os pais batem para
educar, a polícia bate para punir, o filho denuncia para ser ouvido e, perdendo
a capacidade de ser ouvido, só lhe resta a violência. Isso é MUITO GRAVE, pois
sabemos que, infelizmente, no Brasil, são cerca de 500 mil casos de
espancamentos de crianças por ano [*],
e vale lembrar também que, na maioria dos
casos, os agressores são pessoas da própria família. Todas as pessoas que abusam de crianças, seja com
espancamentos, exploração econômica ou abuso sexual, contam exatamente com o
SILÊNCIO das vítimas, e com o DESCASO com que a sociedade e as autoridades
tratam as denúncias feitas pelos pequenos.
7. Ao invés de ameaçar
e amedrontar as crianças que têm coragem para denunciar as agressões sofridas,
deveríamos educá-las sobre como usar os serviços públicos para a sua proteção,
tais como o “Disque 100”, o Conselho Tutelar, o Ministério Público e a própria
polícia. Deveríamos também incentivá-las a procurar ajuda de adultos confiáveis
que estejam à sua volta, tais como professores, profissionais de saúde e
policiais. Bem como exigir que o Estado treine adequadamente estes
profissionais para acolher as denúncias das crianças e tomar as devidas
providências, e não agirem como o policial retratado caricaturalmente no vídeo.
8. Uma criança que chega ao ponto de
chamar os policiais para ser defendida dos próprios pais só o faz porque os
pais já erraram DEMAIS, e precisou encontrar uma coragem tremenda para fazê-lo!
Mas, na realidade brasileira, é raro que isso aconteça, pois é muito mais comum
que a criança agredida sequer saiba que tem o DIREITO de ser tratada com
dignidade, sem quaisquer agressões, e quem existem órgãos de proteção à sua
disposição. Mesmo quando a criança chega a procurar ajuda e a fazer uma
denúncia, nem sempre é ouvida por quem deveria fazê-lo. Haja vista o caso do
menino Bernardo, que deu seu nome à nova lei que protege as nossas crianças.
Seu pedido ao Ministério Público, para não ficar mais sob a guarda do pai, não
foi acolhido, pois o juiz considerou que ele não sofria agressões “graves”. E
todos sabemos como infelizmente terminou esta história: o menino foi cruelmente
assassinado. Nossa sociedade precisa mudar, e começar a dar ouvidos e proteção
a quem ainda não tem o poder de se defender sozinho. Precisamos dar VEZ E VOZ
às nossas crianças. Quantos “Bernardos” a mais estamos esperando, para mudarmos
a nossa cultura e atitude?
Autoria do texto: coletivo do grupo "Crescer Sem Violência"
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[*] Para saber mais sobre esses dados,
acesse o “Mapa da violência 2012: crianças e adolescente no Brasil”.